Raiz da Questão

12:55

Contra fatos...

Ao estudar a criminalização do funk, o historiador não pode esquecer de uma regra básica: desconfiar dos jornalistas. Por Hermano Vianna

A resposta de Francisco Alves Filho (RAIZ. 2) para o meu artigo-manifesto sobre o funk carioca (RAIZ. 1) revela que sua leitura dos meus argumentos não foi feita com a atenção necessária. Em momento algum escrevi que a discriminação contra o funk começou em 2002, ou que é algo recente.

Escrevi, sim, que essa reação, protagonizada por inúmeros e diferentes grupos sociais, “fazia total sentido dentro de uma linha antiga de combate ao funk”, que existe desde que os bailes passaram a ser notícia nas páginas policiais do jornais. Francisco gosta de “esgrimir” fatos. Vamos, então, aos “meus” fatos.

Na época em que fazia minha pesquisa nos bailes, para uma dissertação de mestrado defendida em 1987, ao fazer palestras para explicar o que andava estudando, invariavelmente eu tinha que levar um gravador para mostrar o que era o funk, música que a maioria do público universitário nunca tinha escutado.

Os jornalistas que me entrevistaram quando lancei o livro O mundo funk carioca, em 1988, também não conheciam as “melôs” que lotavam centenas de clubes suburbanos cariocas. Essa era uma das questões centrais para o meu mestrado: como explicar o sucesso de massa do funk sem divulgação na mídia de massa.
As matérias sobre o meu livro não falavam de violência.

A revista IstoÉ o resumia como “leitura agradável sobre o mundo dos disc-jóqueis e dos ritmos de base negra, que alegram os bailes da periferia carioca” (8/6/1988). Assim a Veja iniciava sua matéria: “Quase todos os brasileiros que já ouviram a palavra funk a associam, com maior ou menor precisão, a um gênero de música americana [...] Para uma parcela considerável da juventude carioca, funk é bem mais que isso – é uma palavra mágica sob a qual se abriga um ritual.

Esses jovens [...] formam uma comunidade com códigos de conduta próprios na maneira de se vestir, falar, se divertir e namorar” (11/5/1988). A matéria do Jornal do Brasil dizia que o objetivo do dançarino “é um só: gastar energias, suar, ficar numa boa” (11/5/1988). Ninguém falou de violência; no seu primeiro contato com o funk, o que chamou a atenção da imprensa foi a capacidade de produzir alegria para tanta gente.

Depois disso o funk caiu no esquecimento da imprensa. Nenhuma matéria importante foi publicada até 18 de outubro de 1992, quando houve o tal arrastão na praia do Arpoador. No dia seguinte todos jornais amanheceram com manchetes escandalosas: “Arrastões levam terror às praias”; “Arrastão provoca pânico em Copacabana e Ipanema”; “Arrastões fazem da orla praça de guerra”. O curioso é que a “guerra”, o “pânico” e o “terror” não deixaram vítimas. Não houve nem “registros de roubo durante os tumultos” (palavras da polícia). Mais curioso é constatar que nenhum artigo falava em funk nas matérias do dia 19.

O funk só aparece no dia seguinte, quando a polícia, explicando para os jornalistas que aquilo não foi um arrastão, declarava: “Aconteceu à luz do dia o que costuma ocorrer na saída dos bailes funk. Essas pessoas, que andam em grupos, têm comportamento anti-social e vão fazendo baderna por onde passam. Houve o encontro na praia de turmas rivais” (O Globo, 20/11/2002). Muitos jornalistas entenderam tudo errado: em vez de dizer “não houve arrastão, houve briga, comum em baile funk”, divulgaram que o pessoal do funk fez o arrastão. Foi assim que o baile funk passou a figurar no imaginário carioca como um dos principais problemas da cidade, que deveria ser combatido com todos os meios e muitos editorais de jornal.

Tentei explicar que as brigas dentro dos bailes não eram conseqüência do funk, mas sim de rivalidades – muitas vezes anteriores à chegada do funk no Rio de Janeiro nos anos 1970 – entre favelas cariocas. Essas rivalidades podiam gerar brigas tanto no baile, como na praia, quanto no ônibus. O baile era apenas um dos espaços. Escrevi também que os bailes não formam galeras. Elas já chegam formadas, e o funk é apenas uma entre suas atividades de lazer. Tentei argumentar que o “funkeiro” não existia: mais importante que o gosto pelo funk para a identidade daqueles jovens era o fato de morar em tal ou qual comunidade. O funk é apenas um elemento, não o principal, da cultura da juventude das favelas do Rio.

Não adiantou muito. Desde aquela época os jornais desencadearam uma acirrada campanha contra o funk que dura até hoje (com honrosas exceções, já que a imprensa não é um ambiente homogêneo). O Jornal do Brasil, em 21 de janeiro de 1994, publicou uma matéria com o título bem comum naquela época: “Galera funk mata rival a tiros dentro do ônibus”. Em seu editorial “Ameaça das favelas”, de 5 de fevereiro de 1994, o mesmo jornal listava os seguintes “perigos” crescentes: “Tiroteios, guerras de quadrilhas, bailes funk, lixo lançado para baixo, invasão das reservas florestais, desrespeito à propriedade particular, tudo se avizinha do delírio”. Bem mais recente, O Dia mostrava que a visão da imprensa se mantinha: o editorial do dia 23 de julho de 2002 chamava os bailes, “com todo seu ritual de violência e barbárie”, de “grotescos”.

De onde vinham essas informações para os jornalistas? Conversei com muitos deles. A maioria tinha ido a um ou dois bailes na vida. Preferiam ir aos chamados “bailes de corredor”, os mais violentos, e generalizavam o que viam ali para todo o circuito de centenas de bailes. Muitas vezes fotógrafos pediram para os dançarinos simularem brigas para suas imagens terem mais “impacto”. Em outro editorial (19/7/1995), o JB decretava: “Os bailes funk são um caso de polícia e deveriam ser combatidos em nome da paz social”.

A polícia seguiu as ordens direitinho. Marlboro já teve seu equipamento de som metralhado, numa agressão que poucas outras festas já sofreram no mundo. Já vi policiais parando bailes para escutar, um por um, todos os minidiscs do DJ, procurando proibidões. Os bailes de clube que freqüentei nos anos 1980 foram todos fechados, em nome de leis nem um pouco claras.

O que aconteceu? O único espaço que os bailes encontraram para ser realizados foi dentro das favelas, que na mesma época estavam vendo crescer o poder – também bélico – dos “comandos”. Os chefes do tráfico, cada vez mais jovens, que tinham crescido ouvindo funk como todos os garotos de sua favela, passaram a proteger ou mesmo promover bailes. Onde mais a garotada iria encontrar sua música favorita? Por isso escrevi que entregamos (nós: jornalistas, policiais, poder público, grupos da elite da Zona Sul etc.) o funk para os bandidos.

Esses são os “meus” fatos. Precisam ser detalhados, sim. Essa parte da história do funk, e da “criminalização” do funk, ainda está para ser escrita. Mas que o historiador, seguindo uma regra comum na sua disciplina, desconfie daquilo que foi publicado nos jornais. Os jornais não publicam exatamente fatos, mas sim interpretações sobre os fatos. Não há possibilidade de ser diferente, por mais que os jornalistas tentem ser objetivos, coisa que a maior parte daqueles que escreveram sobre o funk nunca tentou rigorosamente ser, talvez por preconceito, talvez por preguiça, talvez por sensacionalismo.

E continuo convencido de que um movimento de “descriminalização” do funk faria um bem enorme para o Rio de Janeiro.

Créditos: Hermano Vianna é antropólogo, autor dos livros O mundo funk carioca (1988) e O mistério do samba (1995).

Matéria do site Revista Raiz: http://revistaraiz.uol.com.br/portal/


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