João Gilberto do Funk

17:30

Cada manifestação cultural reflete seu tempo e deve ser analisada sob o contexto em que foi criada


Assim que o vídeo acabou, lembro do silêncio que ficou na sala. Era janeiro de 2013, poucos meses antes de o Brasil virar de cabeça para baixo.

A Folha tinha um programa dominical na TV Cultura e aquela entrevista era nossa principal aposta para a edição.

O que deixou muitos espectadores indignados foi um trecho em que a repórter Anna Virginia Balloussier apresentou o funkeiro Mr. Catra aos menos familiarizados com o estilo, dizendo que ele era uma espécie de João Gilberto do funk.

No vídeo, Catra falava sobre sua incursão no universo da música sertaneja, o que confundiu ainda mais o ambiente, bem do jeito que ele gostava.

Comparar Mr. Catra ao João Gilberto não foi uma heresia. Arte é uma questão de perspectiva. Aquele arrepio na espinha que alguém que nasce e cresce na quebrada sente quando ouve tocar o primeiro grave do batidão não é em nada diferente do que outros podem sentir ao perceber os primeiros acordes de “Chega de Saudade” saindo do violão de João.

Cada um sente a arte a partir das experiências que tem, e provocar esse tipo de sensação requer do artista uma sofisticação gigantesca que às vezes pode se resumir a uma batida aparentemente simples, mas que na verdade vai muito além. O “simples” nem deveria se chamar assim, de tão complexo que pode ser. Não era isso, afinal, que também diziam da Bossa Nova?

Cada manifestação cultural reflete seu tempo e deve ser analisada sob o contexto em que foi criada, portanto é injusto compará-las. Funk e Bossa Nova são incrivelmente ricos e geniais em suas propostas, dois estilos que convivem pacificamente entre os mais tocados da minha playlist, mas é inegável que, apesar de totalmente opostos musicalmente, trilham um caminho parecido.

Na última semana, Anitta lançou o clipe "Girl From Rio" em que conversa com a Bossa Nova através de um sample de Garota de Ipanema, de Tom e Vinícius, em uma faixa com o produtor vocal Kuk Harrell, que também trabalha com Rihanna e Beyoncé.

A superprodução é dirigida por Giovanni Bianco, que trabalhou durante anos com Madonna. No clipe, Anitta fala sobre um outro Rio que, até agora, não era para exportação, de Honório Gurgel. Ela canta em inglês em cima da batida suave de um trap quase jobiniano para os padrões do ritmo. De maneira muito inteligente ela conecta definitivamente as duas pontas da história.

Já faz algum tempo que o funk é o ritmo brasileiro mais ouvido no exterior, mas quando um artista de global como Drake regrava a música “Ela é do Tipo” ao lado do MC Kevin o Chris, o estilo alcança outro patamar. O MC de Duque de Caxias que também gravou com Post Malone e Will.I.am foi o primeiro funkeiro a ultrapassar 1 bilhão de streams no Spotify.

Algo parecido na música brasileira talvez só tenha acontecido quando, em 1967, Frank Sinatra gravou um disco inteiro com Antonio Carlos Jobim tocando apenas suas composições. A Bossa Nova ganhou proporções inimagináveis, “Garota de Ipanema” se transformou na música mais tocada e conhecida do planeta. Tudo isso 50 anos antes de vir parar na batida do novo hit de Anitta.

Hoje quando escuto MCs como HarielSalvador da RimaPaulinho da CapitalRyan SP e tantos outros, consigo ver o quanto essa cultura cresceu e evoluiu de forma consistente e bonita. Assim como o rap nos anos 90, o funk hoje tem importância fundamental na construção do imaginário de uma parcela considerável da população.

O funk é grande, dinâmico e tem várias frentes. Quem não gosta de putaria, pode ouvir o consciente, que tem letras que dialogam mais com o rap e ajudam a conscientizar a molecada. Quem não gosta do consciente pode ouvir o ostentação, o melódico, o romântico ou até o proibidão.

Quem não gosta de nenhum deles também não precisa ouvir. O que não dá mais é pra continuar tendo preconceito com o que a música brasileira produziu de mais importante em décadas. Quem em 2021 ainda fala bobagem sobre o funk é porque não está entendo mesmo nada.

Créditos: João Wainer - Folha de São Paulo

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