Bonde do funk abre alas e pede passagem

14:00


Lacraia, Drica Lopes e Serginho 

Semanalmente, 3 milhões de jovens e adultos se divertem ao som do chamado "pancadão", num dos cerca de 879 bailes funk que acontecem todo mês em favelas, clubes e boates em todo o estado do Rio de Janeiro. Dados de uma pesquisa realizada pela Fundação Getúlio Vargas (FGV) mostram que, a cada mês, o ritmo movimenta cerca de R$ 10 milhões, somente no estado, e gera cerca de 10 mil empregos. Mas apesar de sua inegável importância, como opção de lazer, para tantos jovens e de seu poderio econômico, o ritmo, que invadiu as favelas e subúrbios da cidade do Rio nos anos de 1970, ainda é visto de forma preconceituosa por muitos. Críticas que o tacham como música de má qualidade, "bate-estaca", e o associam à violência das favelas e da periferia pretendem diminuir sua importância. Para resgatar um pouco da trajetória desse som que chegou à Zona Sul da cidade, ganhou o estado e até o exterior como "música eletrônica brasileira", a doutora em Linguística pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), Adriana Carvalho Lopes, professora da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ), escreveu o livro Funk-se quem quiser – no batidão negro da cidade carioca. Editado com apoio do programa de Auxílo à Editoração (APQ 3), da FAPERJ, o trabalho é resultado de sua tese de doutorado, defendida em 2010. Adriana utiliza bastante o funk em suas aulas na universidade. 

"Inclusive um dos trabalhos do meu curso é a criação de um funk", destaca. Ela lamenta que os professores ainda tenham preconceito em fazer a mesma coisa. "O funk hoje é a linguagem entendida pelos jovens e os professores têm que estar atentos a este fato", completa.

O livro apresenta duas diferenças significativas em relação a outros estudos e publicações sobre o gênero. A primeira é que, em vez de ser escrito por antropólogos, sociólogos ou mesmo jornalistas, o livro é de uma especialista em Linguística.

 "Procurei entender o fenômeno do ponto de vista do discurso daqueles que o fazem, dando-lhes voz não apenas como objeto de estudo, mas como colaboradores do livro", explica Adriana, carinhosamente apelidada de Drica pelo pessoal do funk

Outra diferença é que, além de estudo acadêmico, o livro é também um relato de alguém que se comprometeu com a causa. Com a antropóloga e professora da Universidade Federal Fluminense (UFF), sua xará Adriana Facina, Adriana Lopes ajudou os funkeiros na criação da Associação dos Profissionais e Amigos do Funk (Apafunk), nascida em junho de 2008.

Devido ao seu envolvimento com o ritmo, o prefácio do livro foi escrito pelo presidente da associação, MC Leonardo. 

"Na Rocinha, onde nasci e me criei, sempre ouvia amigos reclamando que eu ficaria andando com universitários que iam me encher de perguntas, terminar o trabalho e sumir no mapa, sem nem ao menos dizer o motivo da entrevista", afirma o MC.

 "Em 2008, cansado de dizer que a gente tinha que brigar com um mercado monopolizado por duas equipes de som (Furacão 2000 e Big Mix), que nos escravizava e um governo que nos criminalizava, encontrei duas acadêmicas engajadas, duas Adrianas", complementa.

Mortes em acidentes de trânsito são comuns entre artistas do funk 

A ideia da publicação nasceu quando a pesquisadora cursava o doutorado, em 2007, e resolveu estudar a cultura e a linguagem da juventude da periferia carioca. Inicialmente pensou em focar no hip-hop, mas logo viu que o estilo tinha pouca força no estado. 

"O funk era e continua sendo a linguagem forte que afeta a juventude", afirma a professora da UFRRJ. 

Vinda de um período de doutorado-sanduíche no exterior e de um período em São Paulo, seu primeiro contato com uma favela fluminense foi com a Maré. Durante o trabalho de campo, visitou a Rocinha, onde conheceu, numa extinta TV comunitária local, o programa A Hora do funk, em que funkeiros mais antigos, sem espaço na mídia – monopolizada pelas equipes Furacão 2000 e Big Mix – se apresentavam. 

"Ali conheci MC Leonardo, Adriana Facina e a criadora do blog Funk de Raiz, Cláudia Duarcha", recorda.

No decorrer do trabalho, ela visitou bailes em comunidades, viajou de van de uma ponta a outra da cidade com os grupos, no circuito que engloba Baixada Fluminense, Zona Norte, Zona Sul e Zona Oeste, nos chamados bondes do funk

"É interessante observar como os funkeiros conhecem bem mais o Rio que os moradores da Zona Sul", afirma Drica.

 Segundo a pesquisadora, os artistas costumam fazer três, ou mesmo quatro apresentações numa mesma noite, em diferentes pontos da cidade, o que faz com que o número de acidentes de carros seja grande. 

"Aconteceu, por exemplo, com os rapazes do Bonde dos Magrinhos, que viajaram muito comigo e me apresentaram um Rio diferente do que se conhece nos cartões-postais, muito mais caloroso e interessante. Eles se envolveram num acidente que matou o líder, decretando o fim do grupo", lamenta.

Dividido em quatro capítulos, a primeira parte do livro relaciona o funk carioca a um sincretismo negro, que une culturas originárias da África com a identidade cultural de cada um dos países para onde os negros vieram como escravos, a exemplo de religiões afrobrasileiras, como umbanda, que mistura elementos do candomblé africano com o catolicismo. A base do funk é o miami bass, ritmo dos negros americanos, que nos anos 1970 começou a tocar nos bailes dos subúrbios cariocas, e em São Paulo deu origem ao hip-hop. No Caribe, gerou o reaggaetown e em Angola foi base para o kuduro

"O ritmo angolano hoje contribui para renovar o funk carioca. Em minha pesquisa, observei que, desde 2007, jovens da favela de Acari assistiam, em lan houses, a vídeos do ritmo africano no You Tube", recorda.

O segundo capítulo do livro fala sobre a identidade do funk e a marginalização de seus seguidores, enquanto o terceiro apresenta os bastidores, os bailes, e conta a história da criação da Apafunk. Já o quarto, o capítulo final, mapeia os diferentes subgêneros existentes nesse universo, destacando, em entrevistas, alguns de seus personagens, como Tati Quebra-Barraco e a extinta dupla MC Serginho e Lacraia, morto no ano passado por problemas de saúde, aos 33 anos de idade. 

"No documentário Sou feia, mas tô na moda, o DJ Marlboro afirma que Tati seria uma nova espécie de feminista ao abordar o sexo e tirar da mulher o papel subserviente, argumento de que discordo porque a pornografia ganha cada vez um mercado mais amplo, e este é o tipo de funk mais vendido hoje ao grande público", destaca Drica. 

"Já a dupla MC Serginho e Lacraia utilizava cantigas de roda infantis para seus funks com letras de duplo sentido, como a célebre Eguinha Pocotó", completa. 

Em sua opinião, uma música em si não é necessariamente violenta ou pornográfica, uma vez que elas nada mais são do que reflexos da sociedade.

 "Músicas de forró, dos nomes da chamada MPB, do samba, do pagode e de diversos outros ritmos também podem ser muito pornográficos, como a Na boquinha da garrafa, do extinto grupo É o tchan. Por que só o funk é visto como pornográfico?", pergunta.

Para Drica, a dupla MC Serginho e Lacraia, um negro, homossexual assumido que se travestia, era bem mais subversiva do que as mulheres da indústria do funk, sempre colocadas no papel de objeto sexual e subservientes aos homens.

 "Num show da dupla, em uma boate carioca, Lacraia dançava de forma sensual, dizendo que era a Luana Piovanni", recorda. Enquanto a maioria dos entrevistados preferia que conversássemos em sua casa, a dupla fez questão de ir até o quiosque gay Rainbow, em frente ao Hotel Copacabana Palace. 

"Foi muito difícil fazer a entrevista, pois a todo tempo havia pedidos de autógrafos para os dois. Até policiais foram lá pedir para os filhos", completa.

Durante o projeto, Drica passou a entender a exploração comercial da indústria funkeira. 

"Enquanto a cessão de exploração comercial na música pelas gravadoras é de 10 anos, no caso do funk, ela é vitalícia, uma exploração enorme do talento do artista", destaca a autora do livro. Além de resgatar a história do ritmo, dando espaço a funkeiros que estavam longe da grande mídia, a Apafunk criou as chamadas de rodas de funk – espaços de discussão em que militantes de esquerda e de movimentos sociais debatiam com os protagonistas do ritmo. 

"Este espaço servia para acabar com o preconceito contra os funkeiros, que eram malvistos pelo pessoal do hip-hop e também pela esquerda. Por outro lado, os personagens do funk também não simpatizavam com a esquerda", recorda. 

Mas ao conhecer e debater com militantes do Movimento dos Sem-Terra (MST), os funkeiros descobriram que as reivindicações eram bastante parecidas. Como resultado desse processo, houve a criação, no mandato do deputado estadual Marcelo Freixo, da Lei do funk (setembro/2008).

Grávida de seu segundo filho, Drica deverá continuar a se dedicar aos seus estudos sobre o ritmo após o fim da licença maternidade.

"Quero estudar o funk como forma de letramento dos jovens", destaca. E promete: "Como tantas outras crianças, meus dois filhos dançarão ao som do funk..."


 Créditos: Vinicius Zepeda/2012 - FAPERJ

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