A criminalização do Funk

15:51

Como a associação do gênero ao crime remonta uma história que vem desde o Brasil escravocrata de colocar a cultura negra à margem da lei


Quando os versos de Cidinho & Doca ganharam as rádios do Brasil inteiro em 1995 parecia que a narrativa que invariavelmente associa o pobre, negro e periférico ao crime daria lugar à narrativa dos bailes e da diversão a partir da música nos morros cariocas. Era um fenômeno e os versos seguem imortais: “Eu só quero é ser feliz/ Andar tranquilamente na favela onde eu nasci/ E poder me orgulhar/ E ter a consciência que o pobre tem seu lugar”. Mas a crítica social que outros versos do hoje clássico “Eu só quero é ser feliz” carregavam ainda permanecem atuais, em trechos como “Diversão hoje em dia não podemos nem pensar/ Pois até lá nos bailes, eles vêm nos humilhar”. A história no Brasil parece ensinar que manifestações culturais que não nascem na legitimidade dos centros culturais ou dos centros das cidades devem ser criminalizadas. O gesto, muitas vezes, é olhar para quem é acusado de cometer algum crime e associá-lo a uma forma de expressão.

Neste ano, chamou atenção um episódio em que Lorenna Vieira, mulher do DJ Rennan da Penha, foi levada para a delegacia ao tentar sacar R$ 1.500 de sua própria conta no caixa do banco, acusada de usar uma identidade falsa para isso. Menos de um ano antes, em abril de 2019, Rennan havia sido preso por uma alegação de envolvimento com o tráfico na região em que ele realizava o maior baile funk do país – o Baile da Gaiola, na comunidade da Vila Cruzeiro, no Rio de Janeiro, onde chegava a reunir 25 mil pessoas. Ele foi libertado em novembro do ano passado, beneficiado por uma decisão do Supremo Tribunal Federal de derrubar a prisão em segunda instância. Mas o processo ainda está correndo e ele aguarda o julgamento em liberdade.

A Justiça havia emitido um primeiro mandado de prisão contra o DJ em 2016, em um processo que acusava 37 pessoas. Rennan chegou a ficar detido por seis meses, até ser absolvido em primeira instância por falta de provas. O caso foi para a segunda instância e, em março de 2019, ele foi condenado a seis anos e oito meses de prisão. Na acusação de associação ao tráfico, foram usados como prova um vídeo em que cumprimenta um traficante, uma mensagem em um grupo de WhatsApp em que avisa que o ‘caveirão’ da polícia está entrando na comunidade e uma foto em que aparece segurando uma arma – segundo o DJ, era uma fantasia e a arma era de brinquedo.
Outros artistas de comunidades cariocas saem em defesa de Rennan, refletindo sobre a complexidade de se viver em uma favela. MC Carol explica que, para ela, as alegações contra o DJ demonstram desconhecimento sobre a realidade das periferias. “Quem não é de favela, é alienado e não sabe nada desse mundo pode até acreditar que ele é bandido por ter feito isso. Mas quem mora em comunidade conhece as leis. A gente não tem nada a ver com o tráfico: é refém dele”, diz. “Eu perdi três pessoas da minha família por causa do tráfico na minha comunidade. Quando eu ainda morava no morro, uma das bocas ficava na minha porta. Eles ficavam sentados na minha escadinha. Para entrar ou sair, eu tinha que pedir licença. Eles batiam na minha porta para pedir água. Já chegaram a invadir um churrasco meu. Você fica sem ação, porque são pessoas armadas que estão ali. Se você mora na favela e um bandido pede água, um prato de comida ou para tomar banho na casa, você simplesmente tem que deixar. Tem que apertar a mão, dar ‘bom-dia’ para os assassinos da tua tia, do teu primo. Eu e minha família tivemos que fingir que nada aconteceu”, desabafa ela, que não vive mais na favela onde nasceu.


Sobre ele ter alertado para a presença do ‘caveirão’, Carol lembra de uma rotina violenta. “A gente, que é de comunidade, sabe como a polícia funciona: ela sobe na hora em que criança está indo para a escola e vai atirando para qualquer lado”, diz. “Se um tiro pegar num inocente, eles estão pouco se lixando. Se a criança for muito pequenininha, não tem como falar, mas, se for um garoto de 11, 12 anos, eles pegam e botam uma arma do lado: ‘Trocou tiro com a gente.’ E fica por isso mesmo. A gente sabe o que acontece, então, avisa: ‘não deixa as crianças irem para a rua’, ‘não desce para trabalhar agora, a polícia subiu’. Isso é normal na favela. Porque a gente simplesmente morre e não dá em nada, os caras não vão presos.”
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Créditos: Kamille Viola
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